Fernanda Lapa é actriz e encenadora. Já foi bolseira na Polónia e professora na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Actualmente é Professora Catedrática na Universidade de Évora e dirije o Departamento de Artes Cénicas da Escola de Artes. É também Directora Artística do projecto "Escola de Mulheres - Oficina de Teatro". É um prazer imenso contar com a sua entrevista para esta semana.
1- Está ligada ao Teatro e à cultura desde sempre. De onde surgiu o seu gosto pelo Teatro?
Creio que vários factores terão contribuído para o meu gosto pelo Teatro, tanto como intérprete como encenadora. De alguns, tenho consciência e claras memórias, outros serão mais obscuros e inconscientes. Lembro-me de ter sido uma criança muito imaginativa e solitária. Até aos 8 anos fui filha única. Devorava, precocemente, todos os livros infantis que me ofereciam. Lia outros que não entendia muito bem, mas que que me alimentavam a imaginação. Criava outras histórias a partir das personagens dos livros que lia, mas o mais determinante creio terem sido as sessões infantis da Emissora Nacional. Não havia televisão e a rádio ocupava o seu espaço. Aos sábados, às 19h, eu sentava-me no chão encostada a um enorme rádio/picup e deliciava-me com as histórias dramatizadas por algumas vozes juvenis, que hoje são provectos actores… À mesma hora, o padeiro entregava lá em casa, num enorme cesto de verga, pãezinhos quentes, acabados de saír do forno. A minha mãe barrava uma carcaça com manteiga e açúcar amarelo ou com uma barra de chocolate e o meu êxtase era completo! Eu “via” as vozes que saíam do rádio, via os locais das acções, via-me a mim própria numa ou noutra personagem, quase sempre nas protagonistas…
De referir, também, que os meus pais me levavam muitas vezes ao Teatro. Não havia classificação etária e eu gostava sobretudo dos espectáculos dos adultos. Os infantis aborreciam-me um bocadinho! É engraçado reconhecer o mesmo nos meus netos, que muitas vezes adoram assistir aos meus ensaios ou aos dos pais.
2- Como foi para si a sua participação em "Deseja-se Mulher" de Almada Negreiros? Tendo em conta que estava no início da sua carreira e foi tão elogiada pelo próprio Almada Negreiros.
Quando me estreei no Deseja-se Mulher do Almada Negreiros, esse Ser que não deixava ninguém indiferente, vivi momentos de quase embriaguês. A minha capacidade crítica, face à concretização de um sonho que julgava impossível, ficou reduzida a zero. Acho que estava num estado de sonambulismo que me apagou as memórias. Só me lembro de, todas as noites, ouvir a voz do Mestre Almada gritando “que máscara” – era uma cena em que eu ficava sózinha em palco com o rosto apoiado nas mãos – e eu integrei definitivamente essa voz naquela cena! Quando 9 anos depois voltei a representar o mesmo papel, já o Almada tinha morrido, todas as noites ouvia a mesma voz!
3- Fale-nos um pouco da experiência que viveu na Polónia como bolseira.
Em 1978/79 a vida cultural e teatral da Polónia era riquíssima. Todas as cidades tinham vários Teatros, vários Centros Culturais, Orquestras, Coros, Ateliers de Artistas Plásticos, Revistas Culturais e de Crítica às Artes. A vida teatral era profundamente diversificada. Representavam-se os grandes Clássicos lado a lado com os autores contemporâneos, dava-se grande espaço à dramaturgia polaca e, em três grandes cidades – Varsóvia, Carcóvia e Wroclaw – residiam três grandes génios do Teatro – Szjaina, Kantor e Grotwski. Foi exaltante assistir aos seus espectáculos, conviver com dois deles, fazer um estágio com a Companhia do Grotowski. Depois, à chegada a Portugal, foi o balde de água fria! Os terríveis anos 80, de recessão social, de cortes enormes nos apoios à Cultura e, especialmente ao Teatro, foram uma travessia no deserto de que gosto pouco de lembrar!
4- De que modo é que vê o estado actual da cultura em Portugal? Que áreas é que evoluíram mais nos últimos anos?Acha que o estado deveria investir mais na cultura? Portugal ainda fica atrás do que se faz lá fora?
A Cultura portuguesa talvez seja uma das “mais valias” nacionais, e isto para utilizar uma linguagem mercantilista. É absurdo como ainda não foi entendido pelos sucessivos governos. Não é imediatamente rentável – este parece ser o seu pecado – no entanto, se acarinhada, o seu consumo interno seria enorme e a exportação garantida! Nunca se contabiliza o circuito económico que uma actividade cultural gera. No teatro, para se produzir um espectáculo, dá-se trabalho a profissionais de vários ramos, desde a carpintaria à costura, da publicidade à limpeza, da electricidade à cosmética, etc,etc. No cinema, a cadeia económica é ainda maior, e no geral a actividade cultural cria riqueza que é sistematicamente ignorada. Quase sempre quem recebe a menor parte do bolo é o próprio criador – “intermitente” – essa continua a ser a condição da maioria dos artistas e produtores culturais do nosso país. No entanto e, unicamente graças ao seu talento, à paixão desmedida que põe na profissão, o artista português tem uma qualidade que não é inferior à dos seus congéneres de qualquer parte do mundo e, quando por qualquer motivo rompe as barreiras deste pequeno País, aí está ele a ser admirado e, sobretudo, respeitado. E isso no cinema, na dança, na literatura, nas artes plásticas, na música etc,etc. Nem vale a pena lembrar uma Maria João Pires, um Saramago, uma Paula Rego, uma Vera Mantero, etc.etc.
5- O que é que mudou na representação em Portugal, nomeadamente teatro e televisão, nos últimos anos?
Portugal esteve durante muitos anos fechado para o mundo e a evolução nos vários campos das artes, evolução massiva, não de meia dúzia de criadores, faz-se com confrontos culturais, com Escolas de Arte bem equipadas, com condições materiais, com apetência e massa crítica de um público que também precisa de aprender a fruir espectáculos de qualidade. A televisão é uma escola e nem sempre de bom gosto. Escola para os profissionais, escola para o público. Forma gostos, muitas vezes para meu desgosto…e no entanto, só o facto de ser um dos maiores divulgadores da ficção em língua portuguesa me obriga a olhar para ela com algum respeito e, simultaneamente, alguma exigência, embora utópica. É que “serviço público” continua a ser, para mim, um conceito até agora esvaziado de sentido.
6- Fale-nos um pouco dos seus gostos culturais.
Sou capaz de devorar um livro que me apaixone. De saír em êxtase de um bom espectáculo. De ouvir música, clássica, jazz, contemporânea. De parar frente a uma peça de um artista plástico e ficar surpreendida porque ela fala comigo numa linguagem que eu julgava desconhecer. Sou capaz de chorar a ver um filme, não tanto pelo enredo, mas pela beleza de uma ou outra imagem. Mas também me acontece deliciar com um bom romance policial, divertir-me com uma série cómica na TV ou invejar a criatividade de tantos estilistas que me oferecem, só para regalo dos meus olhos, magníficas peças de roupa ou calçado…
7- O seu projecto Escola de Mulheres - Oficina de Teatro, é um dos projectos culturais dos últimos anos com maior destaque e importância para o país. Que conselho daria a quem pretende inovar a cultura e desenvolvê-la?
Obrigada pelo elogio que faz à Escola de Mulheres, Companhia de Teatro de que me orgulho ter ajudado a criar e que continuo, teimosamente, a ajudar a manter-se à tona, no total desprezo a que tem sido votada pelo Ministério da Cultura. Ao fim de 15 anos, conseguimos por fim ter um espaço de trabalho e apresentação dos nossos espectáculos e de outros companheiros. Devemo-lo unicamente à Direcção do Clube Estefânia, local de grande referência teatral desde os inícios do sec. XX e, a nós próprias! Não tivemos um cêntimo de ajuda para reabrirmos ao público, esta sala no coração de Lisboa, nem do Ministério, nem da Câmara, e foram muitos os gastos e o trabalho desenvolvido…considero que somos umas sobreviventes. Convidam-nos para co-produções com entidades culturais importantes, sou muitas vezes convidada para dirigir espectáculos em estruturas teatrais estatais, fui medalhada com o “mérito cultural” mas a indiferença do Estado face à Escola de Mulheres é recorrente. Que conselho posso eu dar a quem quer inovar e ajudar a desenvolver a Cultura? Talvez o melhor é tentar criar músculo, para resistir à apatia, à ignorância, aos lobbies, aos cantos das sereias e, sobretudo, à tentação de desistir.